Por que Primeira Infância

A primeira infância constitui uma etapa fundamental para o desenvolvimento das pessoas, tanto em termos cognitivos como socioemocionais e físicos. Existem poucos investimentos que garantam, ao mesmo tempo, resultados em termos de equidade e eficiência. Investir em desenvolvimento infantil precoce ou políticas de primeira infância é um deles.

É possível encontrar uma multiplicidade de argumentos que apoiam esta afirmação. O principal é o direito de todas as crianças ao desenvolvimento pleno de seus potenciais, estabelecido pela Convenção dos Direitos da Criança e outros instrumentos internacionais.

Por outro lado, as neurociências demonstraram que, nos primeiros anos de vida, o cérebro se desenvolve muito rapidamente e é particularmente sensível às manifestações de uma criação rica e estimulante (Kagan, 2013). A capacidade de aprendizado dos seres humanos durante esses anos é maior e o conjunto de suas habilidades básicas, muito mais maleável (Bernal, 2013).

O investimento em programas de qualidade para a primeira infância tem, dessa forma, uma alta taxa de retorno para toda a sociedade. Algumas estimativas realizadas pelo economista norte-americano James Heckman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2000, indicam que para cada US$ 1 investido em políticas de primeira infância de qualidade, existe um retorno para a sociedade de até US$ 17 (UNICEF, 2010) (Alegre, 2013). As provas do PISA (Programme for International Student Assesment) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que os alunos de 15 anos que assistiram a, pelo menos, um ano de educação inicial obtêm melhores resultados do que aqueles que não o fizeram, inclusive quando são levados em consideração seus perfis socioeconômicos (OCDE, 2014). Investir na primeira infância é a melhor decisão que um país pode tomar (Banco Mundial; Fundação Maria Cecília Souto Vidigal; Children’s Investiment Fund, 2014).

Um terceiro argumento está relacionado à existência, na região, de um desequilíbrio etário do bem-estar ou situação de infantilização da pobreza (Rossel, 2013). Isso significa que as crianças estão sobrerrepresentadas na pobreza em comparação com outras faixas etárias. Sem dúvida, a última década mostrou uma importante redução dos índices de pobreza e indigência (por renda e multidimensional), mas essa situação coexiste com um aumento no quociente entre a pobreza de crianças e a pobreza na população entre 18 e 64 anos (Rossel, 2013). É necessário investir na primeira infância para superar essa situação de violação dos direitos das crianças e contribuir para quebrar o ciclo intergeracional da pobreza e garantir um desenvolvimento mais equitativo e sustentável.

Em quarto lugar, o argumento demográfico em relação à importância de investir na primeira infância é particularmente importante. A América Latina está atravessando um processo de transição demográfica, com os países em diferentes fases: a porcentagem de pessoas com 60 anos ou mais triplicará até 2050 e aumentará o número de doentes crônicos, conforme dados do Centro Latino-Americano e Caribenho de Demografia (CELADE) da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). Por isso, é importante aproveitar a fase denominada “bônus demográfico” (quando as taxas de natalidade ainda estão altas e existe uma proporção baixa de adultos idosos) para fazer fortes investimentos na primeira infância. São eles que permitirão contar, no futuro, com uma população com maiores níveis de capital humano.

Como argumento final, relacionado com o anterior, o investimento na primeira infância gera efeitos positivos em matéria de gênero, ao promover a (re)inserção laboral das mulheres, que continuam a ser as principais provedoras de cuidado. Os países que conseguiram solucionar de forma virtuosa o desafio da integração da mulher no mercado de trabalho o fizeram ao combinar a modificação da distribuição de tarefas do lar entre homens e mulheres, junto com uma forte coletivização do cuidado por meio dos serviços públicos do Estado e, em menor medida, do mercado (Filgueira; Aulicino, 2015).

Com base nesse reconhecimento do papel fundamental da primeira infância, a região da América Latina avançou na última década no desenvolvimento de políticas. Alguns países lançaram planos integrais; outros, serviços em massa e outros, transferências dirigidas a essa população. No entanto, ainda restam desafios importantes pela frente para que essas iniciativas se transformem em melhorias concretas na situação dos menores, que permitam a todas as crianças usufruir o direito de desenvolvimento pleno de seus potenciais. Mais especificamente, merecem destaque aqueles desafios relacionados ao desenvolvimento relativo dos programas e serviços, à utilização de ferramentas de gestão, ao financiamento e à sustentabilidade e institucionalidade. Este especial pretende ser um disparador para a discussão a respeito desses temas, que permita trocar lições aprendidas e reflexões em torno da primeira infância para avançar com o objetivo compartilhado por todos: que as crianças da nossa região possam ter uma infância plena.

Marcos internacionais

A Convenção dos Direitos da Criança estabelece o direito a todas as crianças ao pleno desenvolvimento de seus potenciais, e esse constitui o principal argumento pelo qual é necessário avançar em matéria de políticas de desenvolvimento infantil. A Convenção foi aprovada pelas Nações Unidas em 1989 e ratificada por todos os países da América Latina; a grande maioria sancionou leis que representam o marco regulatório para a total proteção dos direitos da infância (excetuados o Chile e o Panamá, em que somente existem projetos apresentados no parlamento). Isso implica uma mudança na concepção da relação entre o Estado e a infância, colocando esta última no centro da agenda como sujeito de direitos (López; D´Alessandre, 2015).

A Convenção estabelece o princípio do interesse superior da criança, que deve ser levado em consideração em todas as medidas que as instituições públicas e privadas adotarem (art. 3). Reconhece o direito de toda criança à vida, sobrevivência e desenvolvimento, a sua identidade, a conhecer seus pais e ser cuidada por eles na medida do possível, a expressar sua opinião livremente, à liberdade de expressão, consciência e religião, à liberdade de associação, a ser protegida de intromissões arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, sua família e privacidade, à informação, a ser protegida de todo tipo de abuso físico ou mental ou tratamento negligente, ao mais alto nível de saúde e nutrição, a um nível de vida adequado para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social e à educação.

Além disso, estabelece que os adultos (a família, a comunidade e, principalmente, os Estados) são obrigados a proteger e promover esses direitos.

No ano de 2005, o Comitê dos Direitos da Criança apresentou a Observação Geral No. 7 de Realização dos direitos das crianças na primeira infância, na qual se estabelece que “as crianças pequenas são titulares de todos os direitos consagrados na Convenção e que a primeira infância é um período essencial para a realização desses direitos”.

O Comitê tinha constatado que, nos informes dos Estados Parte, a informação disponível sobre a primeira infância era escassa e geralmente relacionada à mortalidade infantil e aos cuidados com a saúde. É dessa inquietude que surge a Observação, segundo a qual a Convenção dos Direitos das Crianças deve ser aplicada de forma holística na primeira infância, levando em conta os princípios de universalidade, indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos (Art. 3). Em seu artigo 5, “o Comitê encoraja os Estados Parte a elaborar um programa positivo em relação aos direitos na primeira infância. A Convenção exige que as crianças, em particular as crianças muito pequenas, sejam respeitadas como pessoas por direito próprio. No exercício de seus direitos, as crianças pequenas têm necessidades específicas de cuidados físicos, atenção emocional e orientação cuidadosa, assim como no que se refere ao tempo e espaço para recreação, exploração e aprendizado social”.

Existem outros instrumentos internacionais importantes em matéria de desenvolvimento infantil. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), decorrentes da Declaração do Milênio aprovada no ano 2000 pelas Nações Unidas, estabelecem a redução da mortalidade das crianças menores de 5 anos em dois terços entre 1990 e 2015, assim como da mortalidade materna em 75% durante o mesmo período, para alcançar, em 2015, o acesso universal à saúde reprodutiva (Objetivos Nº 4 e 5). Embora a mortalidade infantil esteja diminuindo, isso não vem ocorrendo com a rapidez necessária para alcançar a meta. Além disso, o Objetivo Nº 1 propõe reduzir pela metade as taxas de pobreza extrema e de fome. Esse objetivo foi conquistado 5 anos antes da data limite de 2015, mas ainda existem mais de 99 milhões de crianças menores de 5 anos desnutridas e com um peso menor do que o normal. Por outro lado, contar com políticas públicas integrais e de qualidade para a primeira infância contribui para o cumprimento do Objetivo Nº 3 de promover a igualdade entre os sexos, dado que são as mulheres que, historicamente, estão encarregadas das tarefas de cuidado, o que condiciona sua inserção laboral e as sobrecarrega com uma dupla jornada de trabalho.

As Nações Unidas aprovaram os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que partem das metas estabelecidas nos ODM e tentam ir além. Os ODS foram apresentados na Cúpula sobre Desenvolvimento Sustentável após o debate dentro da Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro de 2015. Trata-se de 17 objetivos que contam com 169 metas associadas, consideradas completas e indivisíveis, para serem alcançadas em 2030. Entre eles, os Objetivos 1 e 2 propõem erradicar a pobreza em todas suas formas e colocar um fim à fome, respectivamente (incluindo a eliminação, em 2025, do atraso no crescimento e da emaciação de todas as crianças menores de 5 anos). O Objetivo 3 propõe garantir uma vida saudável e promover o bem-estar para todos em todas as idades (inclui a redução da mortalidade materna para menos de 70 para cada 100.000 nascimentos, a erradicação das mortes de menores de 5 anos por causas que possam ser prevenidas, a redução da mortalidade neonatal e o acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva). O Objetivo 4 consiste em garantir uma educação de qualidade inclusiva e equitativa (inclui assegurar a todas as crianças o acesso à educação inicial e a serviços de cuidado para a primeira infância). O Objetivo 5 pretende alcançar a igualdade entre os gêneros e empoderar todas as mulheres e meninas (inclui o reconhecimento do trabalho doméstico e de cuidado por meio da provisão de serviços públicos, políticas de proteção social e a promoção da corresponsabilidade tanto dentro como fora do lar). E os Objetivos 6 e 7 se propõem a garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água, do saneamento e da energia para todos.

Por sua parte, as Metas Educacionais 2021 (2010) da Organização de Estados Ibero-americanos (OEI) propõem, em sua terceira Meta Geral, aumentar a oferta de educação inicial para crianças de 0 a 6 anos e potencializar seu caráter educativo, garantindo uma formação suficiente dos educadores responsáveis por ela (idealmente, título específico em formação inicial). Espera-se que, para 2015, entre 50% e 100% das crianças de 3 a 6 anos recebam atenção educação precoce e, para 2021, 100%. Em 2015, espera-se que entre 10% e 30% das crianças de 0 a 3 anos participem em atividades educacionais e, em 2021, entre 20% e 50%. Além disso, é esperado que entre 30% e 70% dos educadores que trabalham com crianças de 0 a 6 anos tenham o título específico em 2015 e entre 60% e 100% em 2021.

Por outro lado, as Metas incluem o desenho de um programa de ação comum sobre a primeira infância que tente incorporar como referências de trabalho não somente a dimensão educacional, mas também o contexto social e familiar no qual se desenvolve a criança. Para tal, são definidos objetivos, estratégias e linhas de ação. Os objetivos abrangem desde a sensibilização da sociedade sobre os direitos da infância até o apoio ao desenvolvimento de políticas sociais e educacionais integrais para o atendimento da primeira infância na Ibero-América. As estratégias incluem fortalecer programas e políticas de gestão destinados à criação de centros e infraestruturas e à dotação de recursos para o atendimento da primeira infância; solidificar alianças e relações institucionais com entidades tanto do setor público quanto do privado que trabalham no âmbito infantil; e desenvolver modelos de participação das famílias na educação de seus filhos pequenos.

A Organização Mundial para a Educação Pré-escolar (OMEP), em sua Declaração da 66ª Assembleia e Conferência Mundial da OMEP, realizada em julho de 2014, fez um chamado para: assegurar a igualdade de direitos à educação e aos cuidados para todas as crianças, dando prioridade aos mais pobres e mais vulneráveis; promulgar políticas e práticas para uma educação e cuidados integrais e de alta qualidade; garantir os direitos de todas as crianças a uma infância que inclua brincadeiras e recreação; e promover a participação ativa das crianças em assuntos que as preocupam e em seu futuro. Por sua vez, na Declaração de Medellín (2015), a OMEP renovou seu compromisso com a defesa do direito à educação na primeira infância e realizou um chamado a todos os Estados latino-americanos e à sociedade em geral a: priorizar a criação e gestão de políticas completas que contemplem uma adequada articulação intersetorial e multissetorial, para proteger o respeito de todos e cada um dos direitos das crianças; colocar a educação no centro no desenho das políticas, como direito; promover diferentes modalidades de Atendimento e Educação da Primeira Infância (AEPI); garantir as condições necessárias para o ensino; assegurar a continuidade educacional durante a primeira infância, unificando critérios e práticas entre o nível inicial e as primeiras séries da educação básica ou fundamental; reconhecer a importância da formação e o papel dos educadores; oferecer programas que deem a proteção e assistência necessárias para fortalecer as famílias; e exigir aos Estados e demais instituições o estabelecimento de mecanismos de acompanhamento e avaliação para a continuidade das políticas de AEPI.

Finalmente, a Comissão para a Educação de Qualidade de Todos do Diálogo Interamericano define cinco áreas prioritárias, entre elas o investimento na fase precoce para assentar as bases de aprendizado. Uma estratégia que priorize esse investimento inicial deve responder a três desafios principais: 1) identificar quais programas (e para quem) devem ser expandidos com base em um critério de custo/eficiência que considere a qualidade dos serviços. A experiência a esse respeito mostra que é necessário concentrar recursos em programas de visitas a lares e apoio aos pais com poucos recursos e na expansão da pré-escola; 2) definir a institucionalidade de um setor que não encaixa facilmente no sistema escolar tradicional, o que implica definir uma autoridade coordenadora e de direção e esquemas de coordenação em nível local; e 3) estabelecer as necessidades de financiamento (Fiszben, 2015). Em relação a esse último aspecto, a CEPAL e a OEI estimaram os custos do incremento da expansão da cobertura dentro do marco das Metas Educacionais 2021 e estabeleceram que a expansão da educação inicial (0-3 anos), para alcançar a meta de 37% de cobertura, demandaria um gasto anual adicional de US$ 9 bilhões, e que a universalização da pré-escola demandaria US$14 bilhões anualmente (Fiszben, 2015).

Abordar os direitos e princípios estabelecidos nesses instrumentos internacionais implica avançar em políticas públicas de desenvolvimento infantil precoce que sejam integrais e de qualidade. Isso pressupõe assegurar o acesso a uma saúde de qualidade, nutrição adequada, aprendizagem precoce, condições de água e saneamento adequadas, proteção contra a violência, abuso, exploração e discriminação, que suas famílias tenham tempo e dinheiro para cuidar e que as crianças tenham os instrumentos e espaços necessários para exercer seus direitos de participação e expressão, entre outros. No entanto, conseguir abordagens completas continua sendo um desafio que requer operar no nível micro, nas famílias (práticas, habilidades, processos de tomada de decisão); no nível meso, na comunidade (serviços a um nível comunitário e organização da comunidade), no nível macro, no país (com políticas, orçamentos e recursos) e no nível mega, internacional (definição de metas, padrões e mecanismos de financiamento) (Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, 2006).

É necessário apontar que a seleção de programas apresentados neste site não pretende ser exaustiva nem representativa do universo de políticas destinadas à primeira infância que existem em cada país. Trata-se de uma seleção daquelas iniciativas que, pelo menos no discurso, pretendem ser completas em sua abordagem do desenvolvimento da primeira infância e implicam articulações inclusive com políticas e prestações de longa tradição nos países (como aquelas referidas especificamente à saúde e educação).

No conteúdo apresentado de cada país, há uma descrição de reformas ou mudanças que aconteceram na última década, contemplando sua institucionalidade, financiamento, resultados e prazos. Além disso, em alguns países, são apresentados alguns casos locais de destaque e programas que escapam ao universo cronológico deste estudo, mas que merecem menção por constituírem experiências pioneiras para a região.

Lições aprendidas

A grande maioria dos países da América Latina teve, nos últimos 15 anos, um notável avanço nas políticas dirigidas à primeira infância. Muitos criaram planos integrais, outros, serviços em massa e ainda outros, transferências para essa população. No entanto, subsistem importantes desafios para que essas iniciativas se traduzam em melhorias concretas na situação das crianças pequenas, para permitir que todas as crianças gozem do direito ao pleno desenvolvimento de seu potencial, conforme declaração da Convenção dos Direitos da Criança.

É importante perceber que parecem existir três grupos de países em função do nível da integralidade dos avanços observados nos últimos anos. Em primeiro lugar, há um conjunto de países que avançou em estabelecer estratégias integrais no desenho e também na implementação. É o caso do Chile, Colômbia, Cuba e Equador. Em segundo lugar, há um outro grupo de países que realizou importantes avanços normativos ou discursivos para estabelecer estratégias integrais para a primeira infância, mas que, por algum motivo, não chega a ter uma implementação abrangente. É o caso de Brasil, Costa Rica, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Panamá, República Dominicana e Uruguai. Finalmente, existe um conjunto de países que canalizou os avanços em matéria de políticas dirigidas para a primeira infância por meio de programas, sem pretender atingir uma abordagem integral. Exemplos de esse último grupo são a Argentina, Guatemala, Paraguai, Peru e México.

Nessa heterogeneidade no avanço dos diferentes países em matéria de integralidade da abordagem, percebem-se quatro níveis de desenvolvimento: 1) desenvolvimento relativo dos programas e serviços; 2) utilização de ferramentas de gestão; 3) financiamento e sustentabilidade; 4) institucionalidade.

Em relação ao desenvolvimento relativo dos programas e serviços, a grande maioria das políticas descritas apresenta, como mínimo, um desenvolvimento incipiente de três tipos de serviços para a primeira infância: de cuidado, de educação inicial e de acompanhamento das famílias.

Quanto aos serviços de cuidado, todos os casos, exceto os do Brasil e do Equador, enfrentam um desafio fundamental em matéria de extensão da cobertura. No caso desses dois países, tal desafio existe, mas é menor. Nesse ponto, é fundamental definir o público alvo da estratégia ou do componente de cuidados. Alguns países aspiram a ter enfoques mais universais (como a Costa Rica, Cuba, El Salvador, Honduras ou Uruguai), enquanto outros pretendem proteger a população mais vulnerável. Portanto, não surpreende que os dois países que estão mais perto de cumprir a meta proposta não tenham políticas com aspirações universalistas (no Brasil, o objetivo é abranger todas as crianças em situação de pobreza extrema, enquanto, no Equador, é cobrir a faixa dos 65% mais vulneráveis da população do país).

Apesar dessa situação, deve ser ressaltado que, de uma perspectiva histórica, todos os países se encontram em um processo de ampliação da cobertura dos serviços de cuidado. Isso pressupõe dois desafios.

O primeiro deles refere-se aos efeitos em termos de financiamento que o aumento da cobertura dos serviços de cuidado da primeira infância tem e que deve ser assegurado, bem como às consequências disso na sustentabilidade das políticas.

O segundo desafio diz respeito à qualidade dos serviços e aparece claramente quando se considera o marco normativo diante do qual os países latino-americanos devem prestar contas. O avanço registrado na extensão da cobertura dos serviços de cuidado ainda está a uma distância enorme, por exemplo, das Metas Educacionais 2021 da OEI, não somente pelas brechas atuais em matéria de cobertura, mas também pela ausência de um enfoque que ligue os serviços de cuidado infantil com o direito à educação. Foi comprovado que uma experiência educativa de qualidade pode compensar parte das diferenças entre o desenvolvimento de crianças pobres e ricas (Rodríguez Enríquez, 2007). Nesse caso particular, nas populações vulneráveis, é possível identificar um efeito positivo dos serviços de cuidado quando constituem prestações sustentáveis, de qualidade e integrais (Araujo; López Boo, 2010). A evidência internacional ratifica essas evidências e demonstra que os centros de cuidado podem ter efeitos substanciais no desenvolvimento precoce. Não sendo assim, é possível terem até efeitos negativos sobre o desenvolvimento das crianças (Schady, 2015). Dessa forma, garantir a qualidade dos serviços de cuidado torna-se fundamental.

Ainda não existe uma definição única de qualidade. Algumas evidências permitiriam pensar que não se trata, primordialmente, da qualidade da infraestrutura, e sim da qualidade dos processos e, especialmente, da qualidade da interação entre as crianças e seus cuidadores. Isso pressupõe dar atenção à formação (inicial e contínua) dos cuidadores, à supervisão do serviço, com o foco no desenvolvimento das crianças e na quantidade de crianças por cuidador (Schady, 2015).

No sistema da educação inicial, foi observado, também, um importante desenvolvimento na cobertura que, na região, aumentou, em média, 20% para as crianças de 5 anos desde finais da década de 1990 (quando a cobertura média era de 63%) até finais da década de 2000 (em que a cobertura média era de 83%). Outro fato interessante é que, nesse período, também foi corrigida (pelo menos, em parte) a regressão que o serviço tinha. A diferença média entre o acesso das crianças pertencentes ao primeiro quintil (que nos anos 90 era de 51%) em relação às crianças pertencentes ao quinto quintil (que nos anos 90 era de 81%) foi reduzida: no final dos anos 2000, 77% das crianças do primeiro quintil ingressavam ao sistema de educação inicial, ao passo que a quantidade de crianças do quinto quintil era de 94% (Schady, 2015). É importante ressaltar que essa evolução favorável seguramente também foi estimulada pela obrigatoriedade, em muitos países da região, de ir ao jardim de infância com 4 a 5 anos.

As evidências são muito claras em indicar que as crianças que vão ao jardim de infância estão mais bem preparadas para a escola. Mas aqui entra de novo em jogo a qualidade. O fator determinante mais importante do quanto uma criança pode aprender na sala são os docentes. A efetividade dos professores é muito variável. E uma das causas possíveis disso pode ser que os docentes não contam com as ferramentas apropriadas (para tanto, seria necessário ter uma maior capacitação e supervisão) ou que eles não têm os incentivos apropriados (para isso, deveria ser revisada a faixa salarial dos docentes de nível inicial).

Um desafio persistente nos serviços de educação de nível inicial está relacionado com a incorporação das famílias. Pareceria que o sistema de educação inicial (muito mais do que os serviços de cuidado) torna-se rígido diante da possibilidade de incorporar os pais e as mães nas atividades pedagógicas. Modelos como as comunidades educativas ainda estão muito distantes da realidade na educação inicial, onde, paradoxalmente, sua implementação teria maior utilidade.

Finalmente, as intervenções dirigidas a fazer um acompanhamento das famílias na criação de seus filhos têm uma relevância crucial. Está demonstrado que responsabilizar somente os pais pela criação dos filhos pode ser uma situação menos que ótima (para as crianças), pois muitas famílias podem não ter recursos, ou ter menos informação do que a necessária (Schady, 2015). Nessas situações, os direitos das crianças podem ser vulnerados em várias dimensões. Para reverter essas situações, foram criados os programas de acompanhamento da criação, em que as crianças são visitadas no lar. É realizado um trabalho com as mães (principalmente) e também com os pais, sendo estruturadas atividades e rotinas em benefício das crianças. Essas intervenções têm, comumente, importantes impactos a médio e longo prazos: coeficiente intelectual superior, notas mais altas nas provas de matemática e linguagem, mais anos de permanência na escola, menores níveis de depressão, menor índice de participação em atividades criminais e melhores resultados laborais (GERTLER et al., 2013; WALKER et al., 2011, in SHADY, 2015).

Nas experiências de cada país, as intervenções dessa natureza não são abundantes. Podem ser destacados, como exemplos, o programa Crescendo com Nossos Filhos no Equador e o trabalho de proximidade no Uruguai. Nesses casos, a escala ainda é pequena, e não se sabe se será possível fazer essas intervenções numa escala maior sem perder a efetividade.

Além do mais, alguns países implementaram (dentro ou fora de esquemas integrais) transferências para as famílias, especialmente destinadas às crianças e, em determinados casos, às crianças na primeira infância. São destaques, especialmente, os casos do Brasil (com a transferência do Brasil Carinhoso) e da Argentina (com o salário universal por filho) que tiveram importantíssimo impacto (mesmo que, no caso da Argentina, não muito bem documentado) na redução da pobreza e da indigência nas famílias com crianças pequenas. A saída da pobreza desses lares é, sem dúvida, condição necessária para assegurar o efetivo exercício dos direitos das crianças pequenas de nossa região.

Nos casos apresentados, existe, também, grande heterogeneidade no vínculo que se estabelece para aproximar as famílias dos serviços de saúde e de promoção de uma alimentação saudável. Este componente, tão importante na primeira infância, está presente em várias das iniciativas, como nos casos do Chile (como porta de entrada ao sistema), Brasil, Honduras, Uruguai, Nicarágua, Panamá ou Colômbia. No entanto, essas estratégias de incorporação às políticas de desenvolvimento infantil das intervenções da saúde, geralmente, estão focadas nas crianças menores (de 45 dias a 2 anos), em especial na dimensão biofísica do desenvolvimento (priorizando ações de nutrição); a partir dos 3 anos de idade, o componente relacionado à saúde e nutrição vai perdendo importância diante da dimensão educativa, que passa a ser o centro.

Desse modo, do primeiro ponto analisado, aprendem-se uma série de lições . Por um lado, todas as experiências implicam a realização de um importante esforço para ampliar a cobertura dos serviços de cuidado infantil e educação inicial, especialmente para as crianças de 3 anos ou mais. Na grande maioria dos casos, esses esforços pareceriam estar centrados em incorporar os setores mais vulneráveis. Esse ponto poderia entrar em conflito com outro objetivo desejável nessas políticas (por enquanto, somente presente no caso da Costa Rica): promover a diversidade social dentro da sala de aula, atribuindo vagas para a classe média. Os estudos evidenciam que esse tipo de heterogeneidade incide virtuosamente no desenvolvimento de todas as crianças, mas, de forma especial, daquelas provenientes de setores socioeconômicos mais vulneráveis (Veleda, Rivas; Mezzadra, 2011) e, em termos gerais, gera maior coesão social (Marcó Navarro, 2014). Assim, cada país está, de forma explícita ou implícita, tendo que posicionar-se diante da questão de dar uma cobertura mais universal ou mais focada.

Um segundo ponto de conflito surge entre cobertura e qualidade. A preocupação central das experiências aqui apresentadas é, sem dúvida, a extensão da cobertura desses serviços, mas a discussão sobre a qualidade que devem ter parece estar relegada a segundo plano. Isso se deve, ao menos em parte, a que o conceito de qualidade é difuso. Existem múltiplas e diversas respostas para a pergunta “O que é um padrão mínimo de qualidade?”, de acordo com o contexto (nacional, cultural e comunitário). Em qualquer caso, é muito provável que seja necessário fortalecer as competências dos adultos que acompanham o desenvolvimento das crianças: os pais, os cuidadores e os docentes.

O segundo ponto refere-se aos diferentes níveis de desenvolvimento no uso das ferramentas de gestão como os sistemas integrados de informação social, os protocolos de intervenção ou os sistemas de monitoramento e avaliação.

Os sistemas de informação unificados são uma ferramenta crucial para permitir a articulação das intervenções com outras políticas e, principalmente, para dar a possibilidade de conceber as famílias como uma unidade de intervenção. Nesse sentido, chama a atenção a ausência desses sistemas nos casos do Chile, Argentina, Peru, México e Costa Rica. Os protocolos de intervenção, por sua vez, também são uma ferramenta-chave para garantir a implementação homogênea das políticas no território e para possibilitar mantê-las no futuro. Poucos casos (Equador, México, Panamá e Uruguai) contam com essa ferramenta de gestão tão útil.

Finalmente, os sistemas de monitoramento e avaliação constituem uma ferramenta fundamental para gerenciar qualquer política. Eles não somente permitem corrigir erros e ajustar o desenho das intervenções durante a implementação, mas também ajudam a dirimir a eficiência e eficácia real das políticas que somente podem ser vistas a partir de sua avaliação. Nesse sentido, chama a atenção a ausência desses sistemas em casos como o costarriquenho, o peruano, o dominicano e o argentino, enquanto que outros países, como Honduras, têm o propósito de fazer fortes avanços nesse sentido, como parte da política em andamento. Na maioria dos casos em que esses sistemas foram desenvolvidos, o foco ainda está centrado na avaliação do processo ou, na melhor das hipóteses, no resultado. As avaliações do impacto são poucas e carecem de sistematicidade. A causa poderia ser, ao menos em parte, o debate entre o enfoque nos direitos e o desenvolvimento de avaliações experimentais.

A lição que surge a essa altura é a importância fundamental de investir desde o início num desenho que permita avaliar as políticas de desenvolvimento infantil. Essa é a única forma de determinar o que funciona e o que não funciona, e também de corrigir o rumo durante a implementação, a partir do monitoramento baseado fundamentalmente em sólidas ferramentas de gestão (sistemas de informação social e protocolos de intervenção).

Um terceiro nível de desafios está relacionado com o financiamento e a sustentabilidade dessas políticas. Destacam-se, positivamente, dois casos. Em primeiro lugar, o caso da Colômbia, onde a estratégia De Zero a Sempre conta com recursos garantidos por lei a partir da distribuição dos recursos do Sistema Geral de Participações. Em segundo lugar, o caso da Costa Rica, onde, também por lei, a Rede Nacional de Cuidado e Desenvolvimento Infantil conta com 4% dos recursos do Fundo de Desenvolvimento Social e Salários-Família (FODESAF). Em ambos os casos, mesmo que essas normas ainda não sejam cumpridas na prática, merece ser destacado que os programas contam com instrumentos legais que asseguram uma disponibilidade de recursos para desenvolver as políticas dirigidas à primeira infância. Não é o caso da maioria das experiências apresentadas, nas quais, ano após ano, devem ser defendidos os recursos nas leis de orçamento (ou quinquenalmente, no caso do Uruguai).

Nesse ponto, surge a importância de gerar, de forma paralela aos serviços e intervenções, pactos fiscais e acordos orçamentários para darem respaldo a longo prazo. Na maioria dos casos, pode ser verificado que o comprometimento político com a primeira infância não necessariamente se traduz na necessária institucionalização do investimento e sua conservação a médio e longo prazos. Os casos que conseguiram avanços nesse sentido mostram uma lição: é crucial ter como aliados aqueles que têm o papel de atribuir os fundos (sociais), a partir da introdução, no debate público, da premissa de que investir na primeira infância é uma aposta no desenvolvimento presente e futuro da sociedade e das economias nacionais.

O quarto e, provavelmente, o maior nível de desafios que as experiências aqui apresentadas enfrentam vincula-se a sua institucionalidade. Somente em dois países não existem elementos normativos como marco das políticas dirigidas para a primeira infância (Paraguai e Equador). No caso do Peru, apesar de existirem normas que poderiam ser uma referência para uma política integral para a primeira infância, essas não são implementadas nem têm vínculo explícito com, por exemplo, o Programa Berço Mais de serviços de cuidado infantil e acompanhamento familiar. Na maior parte dos casos, apesar de contar com o marco normativo necessário, existe o importante desafio de fortalecer a coordenação interinstitucional que poderia permitir um enfoque integral (tanto articulando setores como níveis do governo e, também, gerando vínculos com a sociedade civil e o mundo empresarial). Em vários casos, esse desafio está diretamente relacionado com a ausência de uma autoridade reitora clara das políticas da primeira infância (como no Peru, Costa Rica e Argentina), ou com o fato de esta ser incipiente ou ter mudado recentemente (como no Chile e no Uruguai). Em outros casos, como na Colômbia, tem a ver com a resistência dos governos locais e departamentais a dar aos temas da infância a importância que a lei atribui.

A respeito disso, o Programa Eduque seu Filho de Cuba apresenta um caso interessante em termos de integralidade. Criado em 1992, constitui um programa pioneiro na região, declarado pela UNICEF programa de sucesso e aplicável na América Latina, dado que oferece um bom exemplo sobre como integrar os programas de educação com os de saúde e como construir políticas intersetoriais de desenvolvimento infantil precoce. No caso particular de Cuba, o foco na saúde abrange também os determinantes não médicos: educação, nutrição, moradia, emprego e coesão social. Os médicos de família, atores-chave do Programa, contam com uma formação que inclui aspectos psicológicos e sociológicos, pelos quais trabalham com as pessoas e comunidades na busca do desenvolvimento integral da criança (Fórum Mundial de Grupos de Trabalho pela Primeira Infância, 2009).

A intensidade da intersetorialidade depende da medida com que o modelo considere a inclusividade no ciclo das políticas e a comunidade de estados e municípios entre os setores envolvidos. A intersetorialidade de alta intensidade surge quando há inclusividade e a comunidade referida acima (Cunnil-Grau, Fernández; Thezá Manríquez, 2015). Para existir inclusividade, os setores e níveis governamentais devem participar no processo desde o planejamento até a avaliação das ações. Isso implica partir de objetivos comuns claramente identificados e contar com uma racionalidade integradora introduzida no orçamento. Para existir essa comunidade dos entes da divisão política de um país, os setores e níveis de governo devem compartilhar recursos, responsabilidades e ações, assim como sistemas de informação (Cunnil-Grau, Fernández; Thezá Manríquez, 2015). Quando ocorre somente um dos dois processos ou quando os setores envolvidos não intervêm no desenho e planejamento da política ou o conjunto de estados e municípios aparece somente na execução de determinadas ações, a intersetorialidade é de baixa intensidade. Uma abordagem integral de um problema complexo requer intersetorialidade de alta intensidade, que implica alterações no desenho e conteúdo das políticas setoriais assim como nas rotinas, práticas de trabalho e metodologias de entrega dos bens e serviços (Cunill-Grau; Repetto; Bronzo, 2015).

A ausência de intersetorialidade de alta intensidade na grande maioria das políticas apresentadas tem uma influência direta no exercício dos direitos das crianças na primeira infância. É fundamental levar em consideração a Observação Geral Nº 7 do Comitê dos Direitos da Criança, que esclarece que a Convenção dos Direitos da Criança deve ser aplicada de forma holística na primeira infância, de acordo com os princípios de universalidade, indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos. Essa forma de entender a aplicação da Convenção dista muito daquilo que se observa na maior parte das experiências aqui apresentadas.

Contudo, há exceções que merecem destaque. Alguns países da região deram passos firmes para priorizar essas políticas nas mais altas esferas do governo e estão conseguindo realizar importantes avanços, partindo de um enfoque integral. Alguns casos emblemáticos em nível regional são o Sistema de Proteção da Primeira Infância Chile Cresce Contigo, a estratégia colombiana De Zero a Sempre, a política Uruguai Cresce Contigo e Brasil Carinhoso. Um pré-requisito foi fundamental em todos os casos: o enorme comprometimento de quem exercia ou exerce a Presidência da República ao colocar no centro de suas prioridades o amplo atendimento com qualidade para a primeira infância, desde a gestação. Nos casos do Chile, Colômbia e Uruguai, o início da execução dessas políticas baseou-se num desenho que incluía todos os setores que, depois, estariam envolvidos na implementação, fator-chave para assegurar a legitimidade e efetividade. O Chile Cresce Contigo foi além e convocou todos os atores do espectro político e especialistas de distintas disciplinas para desenhar a política. Isso permitiu maior rigor técnico e maior consenso político desde a construção da abordagem integral (Repetto, Veleda, Mezzadra, Díaz Langou, Aulicino, & Acuña, 2015). A respeito disso, também é destaque o caso hondurenho, em que o longo processo de consulta e consenso para a definição da política envolveu a participação das famílias e crianças de 4 a 6 anos, atores chave e, frequentemente, invisibilizados nesses processos.

Reconhecer os direitos e princípios estabelecidos nos instrumentos internacionais apresentados na introdução implica um avanço nas políticas públicas de desenvolvimento infantil para serem universais, integrais e de qualidade. Essas três características continuam sendo desafios nos países da América Latina e, em consequência, o exercício do direito das crianças menores a ter um desenvolvimento pleno ainda não está assegurado. A região passa por um momento histórico chave e propício para avançar em direção a esses desafios e os avanços realizados constituem passos firmes para atingir esse objetivo.

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